Ao entregar uma tarefa exatamente como foi pedida, o funcionário ouve do chefe que "parece que ele não o entendeu" ou que "não foi isso que ele disse"; tem seu desempenho colocado à prova constantemente, mesmo executando tudo o que lhe é pedido; ao reclamar de ter suas habilidades questionadas, ouve que "está exagerando" e que as coisas "não aconteceram assim".
Pode parecer apenas uma falha comunicação entre funcionário e chefia, mas situações recorrentes do tipo, em alguns casos, podem indicar que está ocorrendo o chamado "gaslighting".
No gaslighting, uma pessoa tenta fazer com que a outra duvide de sua própria realidade — em uma manipulação psicológica para chegar aos seus objetivos, sejam eles quais forem. Associado mais comumente a relacionamentos amorosos, o gaslighting pode acontecer dentro do ambiente corporativo e causar danos à saúde da vítima e de seus colegas de trabalho, segundo especialistas.
Porém, não precisa ter relação hierárquica — basta que seja uma relação considerada importante para a vítima, quando ela se torna vulnerável à manipulação por diversas razões. "Se não for, a vítima consegue reconhecer e passa a contestar, se posicionando e indo contra a manipulação", explica Regiane Ribeiro de Aquino Serralheiro, professora de psicologia da Universidade Cruzeiro do Sul.
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O perigo mora quando a vítima não encontra meios para ser ouvida e validada. Ao ter seu desempenho contestado consecutivamente — mesmo que tenha executado exatamente o que lhe foi solicitado — a "falha de comunicação" pode se tornar um infortúnio e um grande prejuízo à saúde mental do funcionário.
"A pessoa vai fazendo mais para atender às solicitações, vai se sentindo culpada, incapaz, questiona sua própria capacidade no trabalho. Isso afeta a autoestima, promove um sofrimento psicológico que pode avançar para casos mais graves quadro de Burnout, queda de produtividade e até depressão", explica Regiane.
E não é só a vítima que sofre: colegas de trabalho também estão fadados a lidar com as consequências da violência. "Testemunhar violência, seja psicológica ou física, também afeta nossa saúde mental. Ele pode temer essas situações e isso o leva ao sofrimento. Muitas vezes, passamos muito mais tempo com os colegas do que com nossas famílias", explica.
A empresa também sai perdendo, segundo aponta Laís Mascarenhas, psicóloga que atua na empresa de treinamento e liderança Crescimentum. Isso porque, quando o funcionário é repreendido por tarefas mais básicas, ele tende a optar por não se desafiar e abraçar tarefas mais complexas, impactando o desenvolvimento da equipe, em muitos casos. "Se a pessoa está em tese "penando" nas necessidades mais básicas, ela tem baixo engajamento. Se decresce o potencial de uma pessoa, decresce o de todos. As melhores equipes performam juntas", argumenta.
Dentre as soluções apontadas pelas especialistas, está em procurar ajuda profissional psicológica para lidar com os danos causados e, também, para se fortalecer de novos "ataques".
Mas não é só isso. Dependendo da situação, o funcionário pode passar a registrar todas as ordens dadas por e-mails e atas de reunião, por exemplo. Desta forma, ele se resguarda de contestações futuras — se houver espaço para réplica.
No entanto, se a situação piorar ao ponto de se tornar assédio moral, a melhor saída é procurar o núcleo de compliance da empresa para fazer uma denúncia sobre a situação.
"A linha entre o gaslighting e o assédio moral é tênue. Por isso, sempre indico o diálogo. Essa precisa ser a primeira alternativa mas, se não der certo, é preciso procurar o compliance", diz Laís.
Renata também reforça a importância das empresas contarem com um canal de denúncias de más condutas. "É muito importante que o setor de Recursos Humanos tenha canais ou setor de denúncias que garantam que essa pessoa possa se expressar e que isso seja investigado por uma sindicância interna", argumenta.
O termo veio do clássico "Gaslight", filme 1944. No longa de Hollywood, um homem manipula sua esposa para que ela acredite que perdeu a sanidade, com o objetivo de roubar a fortuna dela. Para isso, ele esconde objetos como quadros e joias e faz com que ela acredite que é a responsável pelo desaparecimento dos bens, mesmo que não se lembre.
O Dicionário de Oxford nomeou “gaslighting” como uma das palavras mais populares do ano em 2018. A popularidade continuou alta, já que no final do ano passado, o dicionário Merriam-Webster nomeou o termo como a palavra do ano por causa do forte aumento nas buscas — cerca de 1.740% em relação ao ano anterior.